CONTÉM SPOILERS
“O Resgate no mar” (título original: Voyager) traz consigo algumas novidades na escrita de Diana Gabaldon. Não apenas Claire é narradora-personagem da história, mas agora contamos com a mudança de foco narrativo de maneira mais aprofundada, principalmente com a entrada do ponto de vista de Jamie. Gabaldon começou a usar esse recurso ainda no segundo livro, porém é a partir do terceiro que essa miríade de pontos de vista surge com força (e esse leque de narração vai se abrindo mais ainda ao longo da série), transmitindo um maior amadurecimento da escrita da autora. Enquanto no segundo livro há um narrador em terceira pessoa para a linha textual de Roger, e uma em primeira pessoa para Claire; a trama do livro três inicia-se já com a jornada de Jamie em 1746, o que antes não seria possível com a narração de Claire ou Roger. Nesse contexto, Diana demonstra mais uma vez sua maestria na arte literária: os pontos de vista de cada personagem acabam que tendo uma lógica na moldura da história. Ela menciona no volume um de seu compêndio que o primeiro terço do livro é realizado com uma técnica de narrativa em formato de trança, onde Jamie narra de ordem cronológica na terceira pessoa, Claire fala em primeira pessoa em ordem contrária e em flashbacks, e Roger traz o ponto de vista em terceira pessoa como transição entre os dois personagens anteriores. No segundo terço do livro, essa narrativa se fecha em Claire linearmente.
Capa da primeira edição de Voyager (O Resgate no Mar)
A continuação da aventura dos Frasers nesse novo livro inicia-se em 1746, como mencionado, com Jamie em Culloden. O leitor vai descobrir como ele sobreviveu. Na linha narrativa de Jamie acompanhamos os anos em que ele ficou escondido, fugitivo da coroa; o nascimento do seu sobrinho mais novo jovem Ian; sua ida para a prisão em Ardsmuir; sua amizade com o carcereiro Lord John; seus anos de exílio em Helwater onde conhece Geneva Dunsany com quem tem um filho: William, entre outros momentos de sua vida. Paralelamente, com Claire e Roger vemos a busca para saber onde Jamie estaria exatamente para que a médica pudesse voltar a rever o seu amado. Até que preparada, Claire volta pelas pedras, onde reencontra Jamie em sua gráfica em que ele utiliza o nome de Alexander Malcolm. O capítulo 24 é o mais esperado pelos fãs justamente por ser o famoso reencontro entre os dois e ele não decepciona. Há conversa, choro, riso, desmaio, calças arriadas e muito, mas muito amor.
Porém, onde há Jamie e Claire juntos, a confusão parece achá-los. E logo, eles têm que resolver os problemas relacionados com a outra profissão de Jamie: o contrabando. Claire também esbarra em Fergus, agora um adulto de trinta anos, e Ian pai e filho. O jovem Ian é um dos personagens mais carismáticos da série para mim, pois ele mescla um pouco do humor, honra e inteligência de Jamie com a habilidade de Claire de atrair problemas. Fergus havia virado filho adotivo de Jamie, mas pelos anos de Fraser afastado pela prisão e exílio, o jovem francês acaba por seu criado por Jenny. Ao retornar para Lallybroch, Claire tem a maior surpresa de todas. Jamie havia se casado novamente (e o principal: não contou nada a sua primeira esposa, voltando a dividir a cama com ela sem nem mencionar o detalhe do segundo matrimônio) e com ninguém mais, ninguém menos que Laoghaire, a mulher que havia tentado fazer com que Claire fosse queimada como bruxa. Ocorre uma briga enorme entre eles, momento então que a sassenach resolve voltar para sua filha e seu tempo. Porém um tiro que Laoghaire dá em Jamie, faz com que jovem Ian traga a sua nova tia de volta para cuidar do tio. Por meio de muita conversa, Claire é convencida por seu marido a ficar, e o casamento com Laoghaire é anulado, obviamente com uma boa negociação monetária. Na busca pelos valores necessários para o pagamento, o jovem Ian acaba sendo sequestrado por um navio pirata e cabe aos seus tios sair a sua procura.
Para quem gosta de aventura, a viagem de navio de Jamie e Claire é a parte mais divertida deste livro. Eles são acompanhados por Fergus e Marsali (filha do primeiro casamento de Laoghaire e quem Jamie considera como filha) e do Sr. Willoughby, um chinesinho bem peculiar, além da tripulação do navio. Eles conseguem encontrar o jovem Ian, mas acham também alguém que acreditávamos que estivesse morta desde o primeiro livro: Geillis Duncan. Com uma nova identidade, a reunião de Geillis com a família de sua amiga será bem intensa e meio macabra. Os Frasers retornam ao navio de viagem e graças a uma tempestade vão parar na América.
A segunda parte do livro tem um clima de “A ilha do tesouro” de Robert Louis Stevenson (que por sinal, era escocês e um autor que Diana não apenas gosta, mas também indica para os períodos em que não se tem mais nada de Outlander para ler), só que o tesouro no caso seria o jovem Ian. O cozinheiro do navio, com quem Claire tem algumas discussões iniciais me lembra de Long John Silver que é o pirata cozinheiro do navio de “A ilha do tesouro”. Se o personagem de Diana foi ou não inspirado no Long John é um mistério (considerando que os livros de Outlander são lotados de referências literárias realmente não seria uma surpresa se isso ocorresse), mas para mim como grande fã desse romance de Stevenson foi bem gostoso dá de cara com esse contexto de aventura, piratas, caçada, emboscada e etc...
Capa da primeira edição brasileira, Editora Rocco.
Como cada livro tem um tema, o terceiro volume trata sobre identidade, principalmente, a de Jamie em minha opinião. O tempo de separação entre ele e Claire faz com que ele perca muito de sua essência, e com o retorno dela, ele começa a se encontrar novamente. Enquanto fugitivo e prisioneiro da Coroa, Jamie precisou usar nomes diferentes para se esconder ou se camuflar, aprender novas profissões, teve uma nova esposa, uma outra família, quem seria esse novo Jamie? Ele precisou se adaptar à solidão e à dor e criar uma persona apta a sobreviver. Estaria Claire disposta a aceitar esse homem sem saber quem ele havia se tornado?
No momento em que Jamie e Claire estão juntos novamente parece que o antigo Jamie renasce, assim como esse amor que estava adormecido. Dá uma sensação saudosa em relação à noite de núpcias deles no primeiro livro, afinal, o casal tem uma nova noite de amor vinte anos depois em que eles precisam se reconhecer tanto de corpo como de alma. A estrutura desse romance navega um pouco para mim também pela ordem da Divina Comédia de Dante Alighieri, em que o protagonista começa no inferno em busca de sua amada (e logo no início do livro, o primeiro pensamento de Jamie é que ele está morto. E se lembrarmos da despedida deles dois no segundo livro, ele fala em enfrentar duzentos anos de purgatório por ela, assim ele esperava iniciar uma jornada similar a de Dante que procura Beatriz após a morte. Além de que a vida dele longe de Claire não foi nada fácil. “Deixai toda a esperança, ó vós que entrais” seria uma excelente frase representativa da linha temporal de Jamie sem Claire porque antes do reencontro deles Jamie viveu muita desgraça) e termina na sua própria idealização de paraíso. Em termos de local físico seria a América, mas naquela época a América não era nem de perto um Éden. A ideia de paraíso que se resolveu na minha mente foi a de paraíso dos amantes, não de um lugar físico, mas de um estado de espírito da certeza da presença um do outro, uma espécie de felizes para sempre enquanto ambos estivessem juntos e fora de perigo.
Em busca de recuperar a própria identidade e o significado de quem eles são como marido e mulher, Jamie e Claire vivem seu amor com mais intensidade do que quando se casaram. Eles sabem a dor de viver separados, então conseguem aproveitar a alegria da vida juntos. É possível perceber muito do amadurecimento de Jamie tanto como homem, como marido. Enquanto cônjuge, ele está mais apto a entender a modernidade de Claire e a apoia-la em seus desejos. “O Resgate no mar” é não apenas a salvação do jovem Ian, mas também o resgate desse matrimônio e da identidade de Jamie e Claire quanto indivíduos.
O terceiro livro da série Outlander foi publicado no Brasil pela editora Arqueiro dividido em dois tomos.
Compre o livro!
Por Tuísa Sampaio
REFERÊNCIAS:
GABALDON, Diana. Voyager. Nova York: Dell, 2002
GABALDON, Diana. The Outlandish Companion. 2. ed. New York: Delacorte Press,
2015.V.1.
GABALDON, Diana. The Outlandish Companion. New York: Delacorte Press, 2015. V.2.
STEVENSON, Robert Louis. A ilha do tesouro. [s.l.]: L&M Pocket, 2004.
ALIGHIERI, Dante. A dívina comédia. [s.l.]: Landmark, 2011.
Nossa... Parabéns pela resenha.... ótimas referências e comentários sem precisar contar detalhes do desfecho... deixa a liberdade do sujeito para ler essa aventura... excelente!
ResponderExcluirObrigada :D
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